domingo, 26 de setembro de 2010

Solvência II - Uma abordagem didática

As duas últimas décadas propiciaram profundas mudanças na forma de gerenciamento das organizações, seja por imposição do ambiente regulatório, seja por iniciativa própria dos gestores. No setor de seguros, especialmente se levarmos em conta as especificidades do segmento, não foi diferente.
A matéria-prima da indústria de seguros é, na sua essência, o risco. Diversos aspectos complexos que envolvem o cotidiano dessas companhias são objeto de preocupações constantes dos gestores de seguros, como, por exemplo, os riscos associados à criação e à gestão dos produtos comercializados no mercado, o nível de equilíbrio das provisões técnicas para cumprir suas obrigações com o segurado, a adequação às regras dos órgãos fiscalizadores e a necessidade cada vez maior de dispor de capital econômico em níveis satisfatórios para propiciar novos investimentos à organização e lucro aos acionistas.
Como se não bastasse, o ambiente de riscos em que operam, as seguradoras passam por um processo acelerado de mudanças em que as condições econômicas voláteis –, combinadas com cenário de queda de juros, exposição do mercado de ações, aumento das tendências de longevidade, terrorismo, grandes desastres naturais, aumento acentuado da competitividade e casos de proteção legal – geram como conseqüência o aumento da necessidade de uma gestão de risco integrada. Tais preocupações não estão circunscritas às seguradoras que operam na União Européia, berço das normas de Solvência II. Trata-se de um fenômeno mundial que, de uma forma ou de outra, levaram ao modelo europeu que hoje serve de referência mundial. 
Servi-me deste preâmbulo para contextualizar o atual momento da indústria de seguros e propiciar uma visão do que ela representa e sua importância para uma nação. Essa visão que pretendo oferecer aos leitores é fruto do meu envolvimento com o tema e de incessantes discussões que tenho mantido com  gestores de seguradoras, colegas de profissão, auditores e contadores no Brasil e no exterior. No presente artigo pretendo fazer uma abordagem histórica de Solvência II de modo a propiciar aos estudantes de atuária e interessados no tema um resumo de uma apresentação que realizei para estudantes da PUC em São Paulo no último sábado.
Solvência II é um pacote de medidas consolidadas para melhorar o sistema de solvência de empresas de seguro localizadas na União Européia e que tem como finalidade substituir o regime criado na Europa na década de 1970 e aperfeiçoado na década de 1990. Sua meta principal é desenvolver um sistema para determinar o montante de capital que cada segurador deveria possuir para garantir que os segurados estejam adequadamente protegidos.
Todos nós estamos familiarizados com o conceito de capital mínimo tal como é praticado hoje. No entanto, as normas de Solvência II introduziram neste particular novos conceitos, ou seja, a apuração do Minimum Capital Requirement (MCR), por meio de uma fórmula simples, e a introdução do conceito de Solvency Capital Requirement (SCR), possivelmente calculado utilizando uma abordagem padrão teórica ou utilizando modelos de risco interno. Tanto a abordagem padrão quanto os modelos de risco interno precisam levar em consideração uma ampla série de modelos de classe de risco, inclusive riscos de subscrição, de mercado, de crédito, de liquidez e operacional, em que as exigências de capital serão determinadas de acordo com a exposição geral ao risco apresentada pela empresa. A agregação de risco, portanto, é crucial, uma vez que as reduções de capital por meio da diversificação estão diretamente relacionadas à agregação e à dependência de riscos entre às diversas classes de risco. 
Isto representa uma mudança drástica. Essencialmente, entende-se que, ao pretar essa garantia, as normas de Solvência II têm como propósito dar incentivos para a melhoria da gestão de risco dentro das empresas de seguro, exigindo que elas divulguem informações adicionais para melhorar sua transparência. É cada vez maior a expectativa de que a alta administração das seguradoras, de forma semelhante aos bancos, seja proativa na gestão de riscos de suas organizações. Conseqüentemente, as seguradoras precisarão fazer investimentos significativos em ferramentas e recursos para assegurar o cumprimento das exigências do conjunto de normas de Solvência II. A colaboração dos atuários nesse contexto é de vital importância. Todas as seguradoras que operam na União Européia serão afetadas, visto que a adaptação deverá ocorrer até o fim do ano de 2010.
O impacto e o nível de investimentos necessários dependerão do tipo e do porte dessas empresas. Em síntese, Solvência II introduz modificações técnicas de curto prazo que representam uma reavaliação geral das normas de supervisão de avaliação de riscos de seguradoras. Essa reavaliação propiciou um amplo processo de discussão iniciado na União Européia que foi acompanhado de perto pela SUSEP.
A principal razão para o Comitê Europeu promover às mudanças é porque concluiu  que o regime de solvência que por meio do modelo vigente adotado na União Européia não é sensível ao risco e não incentiva uma sólida gestão de riscos, tanto sob o ponto de vista do passivo quanto do ativo. Os riscos envolvendo os passivos são avaliados, segundo o modelo vigente, com base no volume de capital (exemplo: percentuais de prêmios e provisões técnicas), acreditando que esses riscos sejam mitigados por meio de avaliação de riscos de passivos e limites de investimentos admissíveis. Por outro lado, os riscos envolvendo os ativos são analisados apenas de maneira rudimentar, não levando em consideração, em hipótese alguma, os riscos de desbalanceamento entre ativos e passivos. 
A primeira fase das normas de Solvência II foi iniciada em meados de 2001 e finalizada em 2003 (fase conceitual) e teve como objetivo o desenvolvimento de uma estrutura de alto nível para o regime de solvência, a identificação de deficiências na estrutura atual de supervisão e a investigação do uso dos novos métodos e técnicas de avaliação de solvência. A União Européia promoveu diversos estudos. O primeiro estudo, realizado pela Conferência de Supervisores Europeus, concluiu que as exigências de capital são necessárias para a supervisão de seguros, mas que representam apenas uma das ferramentas preventivas que possibilitam a intervenção do órgão de supervisão. Esse estudo inicial revelou também que, além do cálculo de solvência, fatores como qualidade de gestão, por exemplo, podem levar as seguradoras a enfrentar problemas de gestão. O segundo estudo teve a finalidade de encontrar formas de avaliação da posição financeira de seguradoras, contendo recomendações de uma abordagem mais baseada no risco e uma visão econômica da avaliação dos aspectos de solvência. Na fase conceitual chegou-se à conclusão de que a estrutura formada por três pilares, semelhante às normas de Basiléia II adotadas para os bancos, era factível, pois combina mensurações quantitativas e qualitativas, além de melhorias na transparência geral. Em comparação com o regime de solvência vigente, as de Solvência II têm como foco, a posição financeira geral das seguradoras, levando em conta fatores que não foram abordados anteriormente, tais como: (i) balanceamento entre ativos e passivos; (ii) quantificação de riscos e mitigação de riscos sistêmicos; (iii) distribuição estatística de resultados futuros; (iv) convergência de modelos de riscos normativos e de riscos econômicos especificamente voltados à empresa. O principal aspecto dessa abordagem é a decisão de que a estrutura de solvência deve levar em consideração a exposição de risco e as circunstâncias envolvendo a empresa e o mercado, do ponto de vista holístico.
A fase II, denominada fase técnica, foi iniciada em 2003 e foi até meados de 2007. Esta fase abordou, o programa legislativo e administrativo de Solvência II, simultaneamente em três níveis, a saber: (1) o desenvolvimento da diretriz da estrutura proposta pela Comissão Européia a ser adotada pelo Parlamento e pelo Conselho Europeu; (2) a implantação de medidas de desenvolvimento pelo Conselho Europeu, incluindo regras técnicas detalhadas aprovadas pelo Comitê Europeu de Pensões Trabalhistas e de Seguros (em inglês EIOPC) e, finalmente, (3) a assessoria do Comitê Europeu de Supervisores de Seguros e de Pensões Trabalhistas (em inglês CEIOPS) para a Comissão Européia em resposta aos pedidos de assessoria para harmonização de abordagens de supervisão em toda a União Européia. 
No Nível 1 foram desenvolvidas medidas para implantação técnica e aprovação formal pela EIOPC, como representantes dos governos de cada país que compõe a União Européia. No Nível 3, a CEIOPS forneceu assessoria técnica à Comissão Européia sobre o desenvolvimento das medidas nos Níveis 1 e 2, formalmente respondendo a cada etapa dos pedidos de assessoria após obter os comentários das partes interessadas. Foi considerável, o escopo de assessoria e das consultas contempladas no desenvolvimento de cada nível das normas de Solvência II, incluindo a consulta de supervisores e associações, como a Associação Internacional de Supervisores de Seguros (IAIS), sobre normas relacionadas a supervisão e solvência, e a Associação Internacional dos Atuários (IAA), sobre adequação de capital; além da consulta a representantes do setor de seguros na Europa, como CEA e Comitê de Riscos Operacionais. 
Sob a perspectiva da estrutura de três pilares, é preciso salientar que o pilar 1 trata de exigências quantitativas que prevêem o MCR e o SCR, conforme já comentei, além de outras questões técnicas relevantes que compreendem a mensuração dos riscos técnicos propriamente ditos. Mas vamos nos ater apenas ao MCR e ao SCR. Esses capitais, comparados com o capital de fato disponível, ou seja, o conceito de capital econômico disponível em uma seguradora (representado pela diferença entre ativo e provisões técnicas), leva a três cenários possíveis: (a) se o capital econômico for maior que o SCR, a seguradora encontra-se suficientemente capitalizada; (b) se o capital estiver entre o SCR e o MCR, isso representará um primeiro indicador para o órgão de supervisão e para a seguradora e, finalmente, (c) se o capital disponível estiver abaixo do MCR, a seguradora será considerada tecnicamente insolvente.
O pilar 2 contempla aspectos qualitativos e enfoca os processos de controle interno e de gestão de riscos internos. A gestão de risco é definida em sentido geral e contempla os princípios de prudência atuarial, controle sobre acumulação e gestão de ativos e passivos que podem determinar ajustes dos níveis do SCR. O pilar 2 introduz novas exigências em relação a riscos que porventura tenham deixado de ser previamente quantificados de forma adequada, como, por exemplo, risco de grupo e risco estratégico. Os processos de supervisão também são definidos nos termos do segundo pilar e se baseiam nos níveis de capital (MCR e SCR), que contemplam níveis para intervenção dos supervisores. Se o capital disponível segundo as normas de Solvência II estiver subordinado aos SCRs, a autoridade normativa pode intervir antes que os níveis de capital fiquem abaixo do MCR. Dessa forma, o processo de supervisão ficará cada vez mais dependente do perfil de risco de cada seguradora.
O pilar 3 contempla as regras de transparência de mercado e divulgação para atendimento aos órgãos fiscalizadores e aos investidores. A transparência de mercado aumentará para permitir que os investidores e as partes interessadas obtenham melhores informações a respeito do risco real e do perfil de retorno de uma determinada seguradora. É especialmente interessante observar a extensão da convergência entre as normas de Solvência II e o desenvolvimento dos padrões contábeis que compõem o IFRS 4 (que trata das divulgações relacionadas com contratos de seguro), o IFRS 7 (que trata das divulgações com instrumentos financeiros) e, no longo prazo, a fase 2 da minuta de contratos de seguros contemplados no IASB, conjunto de regras contábeis aplicáveis às companhias seguradoras na União Européia.
O modelo ao qual estamos nos referindo foi testado na Suíça. Os testes de impacto de solvência aplicados demonstram que os estudos de impacto quantitativo foram de especial importância para a conscientização sobre as exigências a serem atendidas pelas companhias de seguros. O primeiro estudo dessa natureza foi concluído em 2005, tendo como foco a avaliação dos níveis de prudência nas atuais provisões técnicas, comparando-os com os intervalos de confiança predefinidos. Os resultados apresentados nos diversos estudos realizados pelas empresas participantes foram utilizados para possibilitar maior desenvolvimento das assessorias dadas pela CEIOPS à Comissão Européia. O segundo estudo de impacto quantitativo teve como foco às exigências de capital de acordo com as normas de solvência. Esses testes de campo foram de extrema importância para possibilitar que as CEIOPS desenvolvessem propostas mais concretas em relação ao cálculo de provisões técnicas, ajustes de margens de risco e ajuste de probabilidade de insolvência. Esses testes de impacto quantitativo compreendeu um processo iterativo em que estudos adicionais fossem exigidos ao longo de toda a fase de desenvolvimento da estrutura de Solvência II.
          Procurei acompanhar muitas dessas discussões relacionadas às questões técnicas com colegas especialistas no exterior e com profissionais de outras áreas da empresa a que pertencia, em razão dos aspectos multidisciplinares trazidos por Solvência II. O tema é complexo, mas ao mesmo tempo apaixonante. Desperta preocupação e dúvidas no ambiente profissional e corporativo das empresas seguradoras, como não poderia deixar de ser. Por meio de processos de consulta, o setor de seguros expressou diversas preocupações específicas. Muitas delas de difícil consenso.
O Brasil não ficou de fora dessa discussão. Em 2006 se antecipou ao estabelecer regras de capital, abrangendo o risco de subscrição. A SUSEP já anunciou que outros riscos serão regulamentados ao longo do ano. As seguradoras brasileiras já tem condições de definir a margem de solvência com base no modelo interno. Isso representou um  importante passo, visto que há pouco tempo o foco principal dos gestores de seguradoras foi a rentabilidade obtida no mercado. Com a dificuldade de obter ganhos mais elevados de rentabilidade, face a redução da taxa de juros, as operadoras terão que priorizar a gestão de riscos. Com a regulamentação das novas regras para tratar os demais riscos, as companhias brasileiras estarão alinhadas as melhores práticas de mercado. As companhias seguradoras que se adequarem a esta nova realidade terão dado um importante passo em relação aos seus concorrentes e o mercado não será mais o mesmo. Daí a importância dos atuários olharem com atenção esse movimento, visto que sua contribuição é de suma importância nesse processo.

Marco Pontes é diretor da LG&P Advisory Services e membro da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP. E-mail: marco.pontes@lgpconsulting.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário