sexta-feira, 19 de agosto de 2016

A reforma da previdência é uma questão atuarial



Em geral os sistemas de aposentadoria se fundamentam em modelos de longuíssimos prazos e levam em consideração projeções econômicas e demográficas. Para que tais sistemas sejam mantidos em equilíbrio, é recomendável que se promovam ajustes periódicos e paulatinos, sobretudo nos anos em que a economia do país atravessa por períodos de bonança. Caso contrário, os desequilíbrios gerados pelo aumento dos gastos se tornam frequentes. Não à toa, acompanhamos, ao longo das últimas décadas, diversos países promoverem mudanças em seus sistemas de aposentadoria. A questão da previdência tem sido – e continuará sendo – um tema prioritário nas agendas dos governantes em todo o mundo. Não se trata, pois, de uma questão circunscrita ao Brasil.
Nesse contexto, são diversos os fatores que contribuem para que os referidos desequilíbrios se apresentem. Nos regimes que seguem o modelo de repartição simples – o denominado “pacto de gerações” –, tais fatores estão vinculados à questão atuarial, isto é, à queda do índice de fecundidade, ao envelhecimento da população e ao alongamento da expectativa de vida. Salvo raríssimas exceções, esses regimes não são mais sustentáveis. Prova concreta disso é a própria experiência brasileira. Por possuir um sistema muito complexo, o Brasil se encontra em uma situação na qual não parece ser possível alimentar perspectivas otimistas.
Em 2015, o déficit da previdência teve pesada parcela de responsabilidade no aumento do déficit público, situação que se perpetuará se nada for feito nos próximos anos. Os indicadores macroeconômicos denunciam a gravidade dos fatos. Não são poucos os argumentos e os dados estatísticos que corroboram a necessidade de se promover uma reforma estrutural do sistema brasileiro. Inclusive, ao longo das três últimas décadas, os especialistas na matéria vêm tentando, sem sucesso, alertar os governantes de que é preciso empreender mudanças urgentes. No entanto, avançou-se muito pouco nesse sentido.
Além dos fatores de desequilíbrio já comentados, no caso brasileiro, há variáveis adicionais que acabam por tornar o panorama ainda mais complicado, tais como: (i) a concessão de vantagens para determinadas categorias profissionais; (ii) o critério de elegibilidade aos benefícios; (iii) a indexação da aposentadoria ao salário mínimo; (iv) a extensão do benefício de aposentadoria para pessoas que nunca contribuíram para o sistema; (v) a equivalência do benefício de aposentadoria ao salário da ativa de uma determinada parcela da população; e (vi) o fato de o tempo de serviço ter prevalecido por longos anos como condição primária para a aposentadoria, o que possibilitou o ingresso precoce de muitos participantes à condição de aposentado. Como se não bastasse os elementos acima destacados, o aumento da economia informal, o desemprego e a dificuldade de entrada no mercado de trabalho também serviram para agravar ainda mais a situação nos últimos anos. Tais distorções expõe, de maneira inegável, a precariedade da arquitetura dos sistemas de previdência que coexistem no Brasil.
Vale ressaltar que o sistema brasileiro, além de complexo, também é injusto, vez que parece dividir o país em castas. De um lado, tem-se o Regime Geral da Previdência Social – “RGPS” –, representado pelos trabalhadores da iniciativa privada que contribuem para o INSS; de outro, os Regimes Próprios da Previdência Social – “RPPS” –, que cobrem o setor público e os militares.  O primeiro, que encampa um contingente de aproximadamente 100 milhões de participantes, entre contribuintes e beneficiários, gerou, em 2015, um déficit de R$ 78 bilhões. No mesmo período, o regime próprio do setor público, que abrange uma população próxima de 10 milhões de participantes, produziu um déficit da ordem de R$ 114 bilhões. Não é preciso ser um especialista para diagnosticar que há algo de errado, sendo que tal distorção tem se perpetuado ao longo dos anos.
É perfeitamente compreensível a dificuldade que pessoas leigas normalmente possuem para entender a importância que o equilíbrio atuarial tem para a manutenção da sustentabilidade de determinado sistema de previdência. Nessa toada, há que se fazer uma distinção entre benefício assistencial e benefício previdenciário.
No rol de benefícios assistenciais, enquadram-se os pagamentos do auxílio-doença, do auxílio-maternidade, do auxílio-reclusão, entre outros. Em tese, eles devem cobrir o indivíduo antes que seja possível gozar das garantias inerentes ao direito à aposentadoria. Já o benefício previdenciário está relacionado ao pagamento de valores periódicos, tais como a renda de aposentadoria e a renda por idade. Como podemos observar, tratam-se de situações distintas. Enquanto, no primeiro caso, estão inseridos os benefícios de curto prazo e – ressalva feita à invalidez – anteriores à concessão da aposentadoria, os demais são rendas programáveis, que devem levar em conta os aspectos atuariais no que tange ao financiamento. Quanto aos benefícios assistenciais, é compreensível – e justificável – que o financiamento ocorra com base em um modelo de mutualismo, diferentemente do que deve ocorrer no caso dos benefícios previdenciários, para os quais é necessário que exista uma relação direta entre o que foi pago e o que será recebido, no futuro, a título de renda.  
Entretanto, no Brasil, por questão ideológica, uma parcela significativa dos opositores à reforma estrutural da previdência despreza a lógica atuarial e contributiva dos benefícios previdenciários, sob a alegação de que tanto os benefícios assistenciais de curto prazo quanto os benefícios previdenciários de longo prazo devem ser financiados segundo um modelo de redistribuição de renda. Nas últimas décadas, nossos governantes ignoraram aspectos técnicos incontestáveis, subestimando a gravidade da situação. Alguns foram mais longe ao se acomodarem com o superávit de caixa observados em anos de bonança da economia, embora o déficit atuarial já fosse uma realidade. 
O superávit financeiro temporário, que foi possível obter no passado, deveu-se à custa do sacrifícios da maior parte dos trabalhadores e dos empresários da iniciativa privada, isto é, por meio do aumento das contribuições; da redução do teto do benefício da previdência social; e da adoção de medidas paliativas, como a introdução do fator previdenciário e de outros fatores exógenos, que, a rigor, nada têm a ver com a questão previdenciária, visto que o déficit atuarial, como já afirmado neste artigo, é uma realidade há décadas.
Os governos FHC e Lula ensaiaram promover a reforma em períodos mais propícios, quando dispunham de apoio popular e político para fazê-lo, mas foram ineficientes em convencer a sociedade de que se fazia necessário dar esse passo. As principais causas que levaram ao fracasso de ambos foram a falta de vontade política, a impopularidade do tema, o forte corporativismo de alguns setores da sociedade, e a questão do direito adquirido – versus expectativa de direito –, que perpetua o abismo entre os participantes do RGPS e os do RPPS.
É preciso defender um sistema que não aprofunde as diferenças existentes entre os trabalhadores da iniciativa privada e os da iniciativa pública, como acontece na atualidade. A nosso ver, o sistema ideal não pode conceder diferenças tão acentuadas entre os trabalhadores de um setor, em detrimento do sacrifício dos de outro setor. Só assim seria possível evitar a perpetuação de um sistema injusto.
Do ponto de vista teórico, o sistema de três pilares é uma aspiração. O primeiro pilar seria baseado no regime de repartição simples até um limite mínimo, financiado por meio da redistribuição de renda; o segundo pilar, compulsório no regime de capitalização junto ao setor privado, com contribuição obrigatória dos trabalhadores e das empresas; e, finalmente, o terceiro pilar, facultativo, e financiado, exclusivamente, pelo trabalhador que desejar uma renda superior ao limite do segundo pilar.
Apesar de todo o avanço que obtivemos nos últimos anos em termos de regulamentação para proteção de direitos legítimos, deparamo-nos com situações pontuais de corrupção e de desvio de recursos em fundos de pensão, patrocinados por algumas empresas estatais – como foi, recentemente, revelado pela mídia. No meio desse fogo cruzado estão os trabalhadores e os participantes aposentados e pensionistas, maiores prejudicados pela ação maléfica desses agentes inescrupulosos, cujo papel principal deveria ser o de zelar pela gestão eficiente dos recursos acumulados ao longo de anos. Repentinamente, em tempos difíceis da economia, os principais atores do sistema são chamados para fazer um esforço adicional de contribuição para cobrir o desfalque. 
Por outro lado, os custos dos planos privados comercializados nos bancos, ainda são vistos com desconfiança por grande parte da população, em função do custo que representam ou da baixa familiaridade dos brasileiros com este tipo de produto. Para qualquer cidadão, trocar uma promessa garantida pela Constituição para se transformar em mero consumidor de um produto não parece ser um bom negócio, mesmo que o pretenso direito adquirido seja uma garantia fugaz diante da falta de recursos para honrá-lo. 
Como podemos observar, ainda estamos muito longe de uma solução. Fato é que o tema da reforma volta à discussão neste novo governo, tendo sob pano de fundo um cenário caótico do ponto de vista político, econômico e social. O desafio é grande e, ao que tudo indica, diferentemente do que já se verificou no passado, a sociedade brasileira não será mais tolerante em relação a qualquer tentativa de aumento de impostos ou de manutenção de privilégios.

Marco Pontes é diretor da LGP Consultoria Atuarial e líder da prática de Serviços Atuariais da Grant Thornton.